Ficou aquém das expectativas. Mas surpreendeu num ponto. Passam 10 dias sobre o lançamento em linha da Biblioteca Digital Camões e chegou o momento de criticar.
Política de domínio público
Os livros clássicos em domínio público são fornecidos, até ao momento, por uma única editora privada (a Porto Editora).
Antes de descarregar o ficheiro é necessário manifestar que se concorda com a sua política de direitos autorais (em rigor, de direitos conexos):
O ficheiro apenas poderá ser lido em linha, impresso, ou guardado no computador. Não pode ser partilhado.
Infeliz.
Independentemente das parcerias e protocolos que o Instituto Camões mantenha com editoras privadas, e dos ganhos que possa obter com isso, é indecente ter de recorrer aos ficheiros produzidos por certas editoras para se apresentar aos utilizadores obras caídas no domínio público.
A BDC deve saber que As Pupilas do Senhor Reitor ou A Queda dum Anjo estão gratuitamente disponíveis em inúmeros sítios na Internet, sem entraves à sua circulação.
A Biblioteca Digital Camões deve retirar imediatamente todas e quaisquer restrições à livre difusão das obras caídas em domínio público. Se necessário, populando o seu acervo com outras fontes e esquecendo essa parceria com a Porto Editora.
Trata-se de uma parceria saloia que não revela senão que a BDC teme enfrentar os interesses económicos dos editores no que toca ao domínio público.
Nas palavras da Biblioteca:
« A Biblioteca Digital Camões tem autores e edições no domínio público, mas também em edições actuais, protegidas por direitos conexos (fixação de textos, notas críticas, prefácios e posfácios…etc.), obras protegidas por direitos e de autores vivos. Consequentemente, cada edição publicada terá um nível de acesso que é resultado da expressão de uma vontade conjunta do Instituto Camões, I.P., e do editor e/ou instituição proprietária da edição.»
Ora, a BDC, como um projecto de um instituto público, deve saber que:
Os direitos conexos sobre obras em domínio público (a fixação do texto, as notas críticas, os prefácios e posfácios, etc.) são precisamente os maiores entraves à livre circulação das obras na era digital.
As editoras aproveitam-se (legalmente) da possibilidade de acrescentarem esses conteúdos aos textos clássicos para protegerem (legalmente) as suas edições.
No entanto, o uso deste direito pelos editores contribui para enormes obstáculos à digitalização e circulação de obras clássicas por parte de utilizadores comuns. A pretexto de se incluírem nas obras caídas em domínio público notas de rodapé e prefácios (na maioria das vezes sem qualquer conteúdo útil), os editores amarram as mãos a milhares de voluntários que tencionam colocar em linha obras sobre as quais já não existem direitos de autor originários.
Se as editoras o fazem legitimamente, é impensável que um instituto público compactue com esta prática.
No mínimo, a BDC deveria apresentar, a par da versão protegida por direitos conexos (contendo os tais prefácios), uma versão pura, de acordo com o original, livremente partilhável.
Mas a BDC não peca por falta de honestidade. Assume:
«A Biblioteca Digital Camões não se pretende apresentar como alternativa ou um concorrente de editoras ou livrarias. É uma biblioteca. O trabalho dos editores é insubstituível e fundamental. O reconhecimento dos responsáveis pelas edições é também uma manifestação de respeito pelas pessoas que ganham a vida a fazer e a vender livros, e que aceitaram participar connosco nesta missão de divulgação da língua e cultura portuguesas no mundo.»
Dezenas de projectos voluntários disponibilizam gratuitamente milhares de obras caídas em domínio público. Voluntários que não ganham a vida a fazer e vender livros, mas perdem horas das suas vidas particulares e familiares a digitar obras para que possam ser gratuitamente lidas, descarregadas e partilhadas na Internet por falantes e aprendizes do Português em todas as partes do Globo.
A BDC parece não compreender, ironicamente, que no novo mundo digital os conteúdos em domínio público são mais e melhor produzidos por voluntários do que por editores.
Melhor faria se procurasse voluntários para digitalizar obras e as colocarem na BDC sem quaisquer limitações de partilha.
Em suma, na prática temos um instituto público a oferecer um acesso condicionado a conteúdos em domínio público, fazendo publicidade à versão em papel, que poderá ser adquirida num certo sítio electrónico de uma certa editora privada.
Indecente.
Merece por isso, quanto à política de disponibilização de obras caídas em domínio público, nota muito, muito negativa.
Suporte para dispositivos móveis
Surpreendente. A BDC pretende oferecer conteúdos preparados para dispositivos móveis: iPod, Palm, PocketWord, Telemóvel/Celular. Damos a mão à palmatória. Nunca pensámos que a BDC estivesse atenta a este fenómeno.
A BDC compreendeu uma das principais funcionalidades de uma biblioteca digital moderna: oferecer conteúdos em formatos que permitam ao utilizador não se confinar à secretária, podendo transportar milhares de livros no seu bolso.
Obviamente que a escolha dos formatos proprietários é questionável.
O formato EPUB não está disponível e é também de lamentar que não se tenha pensado nos dispositivos dedicados de leitura de livros electrónicos, dos quais o Ler Digital tem dado notícia e que revolucionaram a forma como se lerá no futuro.
Por outro lado, não só alguns, mas todos os livros do catálogo da BDC deveriam estar disponíveis para leitura em dispositivos móveis. (Quando a BDC iniciar o processo de conversão dos ficheiros, compreenderá melhor o que abaixo diremos sobre o formato PDF.)
A BDC precisa apenas de repetir os trabalhos de casa e estudar um pouco mais.
Pela intuição quanto às potencialidades de leitura em dispositivos móveis, merece nota positiva alta.
Formato dos ficheiros escolhido: o PDF
Não nos enganámos quanto previmos que a BDC escolheria o PDF como formato-padrão. Uma má escolha.
Apesar do utilizador comum estar familiarizado com o PDF e o considerar um formato insuspeito, o PDF é um quebra-cabeças no que toca à sua convertibilidade. É difícil converter ficheiros PDF para RTF ou HTML, apesar das inúmeras ferramentas disponíveis.
Para os livros que só contêm texto, a BDC deveria ter escolhido um formato ainda mais aberto. Ex.: RTF (legível em praticamente todos os editores de texto do mundo) ou o HTML (formato das páginas da Internet, legível em qualquer navegador).
O PDF pretende imitar a aparência do texto quando impresso numa folha de papel A4. O que não faz sentido numa biblioteca… digital.
Para mais, os dispositivos de leitura actuais (e, previsivelmente, os do futuro) terão dimensões inferiores ao A4. Isso tornará sempre difícil a sua leitura: as letras aparecerão muito pequenas ou será necessário aumentar/diminuir o texto repetidamente.
Ainda que os conteúdos fossem oferecidos em PDF, deveriam ser igualmente fornecidos em outros formatos.
Para além dos já referidos, a Biblioteca Digital Camões deveria disponibilizar imediatamente todos os livros numa versão EPUB, o recente padrão para livros electrónicos.
Merece, quanto ao formato padrão, uma nota negativa.
Principais conteúdos: crítica literária e História
Nada a apontar. É uma escolha que contribui para a diversidade. A maioria dos conteúdos disponíveis na Internet são de literatura.
Abstemo-nos de avaliar.
Literatura: poucos clássicos
Muito pouca literatura. Muito longe das obras completas dos principais escritores portugueses. Era previsível. Mas talvez com o tempo o acervo aumente.
Nota claramente negativa.
Resolução das imagens: satisfatória
As digitalizações de edições em papel que analisámos têm qualidade satisfatória para as submeter um reconhecimento óptico de caracteres. Tal é o caso das Gavetas da Torre do Tombo, ou dos Opúsculos de Etnologia. Merece nota positiva neste ponto e esperamos que assim suceda com os restantes parceiros.
A BNC deve exigir qualidade nas digitalizações, sob pena de não disponibilizar os ficheiros no seu acervo.
Nota positiva.
Classificação geral:
A Biblioteca Digital Camões merece nota positiva baixa. Apenas a salva a visão dada aos dispositivos móveis. Contudo, o projecto irá naturalmente crescer e esperamos que algumas das críticas que lhe apontamos sejam ultrapassadas num futuro próximo.
Boa sorte para a BNC.